Cientistas políticos analisam diversidade e participação social nas eleições 2020

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19/11/2020 DIREITOS HUMANOS – PARTICIPAÇÃO SOCIAL – POLÍTICAS PÚBLICAS
Cecília Garcia

Pela primeira vez na história das eleições, um líder quilombola assume a prefeitura de uma cidade, com a vitória de Vilmar Kalunga (PSB) em Cavalcante (GO). Na capital de São Paulo, Erika Hilton (PSOL) foi a primeira mulher trans a assumir uma cadeira na majoritariamente branca e cisgênera Câmara. Curitiba também elegeu sua primeira vereadora negra, com a candidata Ana Carolina Dartora (PT) sendo a 3ª candidata mais votada. 

Mais do que apontar uma vitória de grupos historicamente sub-representados na política institucional, estes ineditismos denunciam ainda um longo percurso para tornar os espaços políticos mais democráticos e diversos. Segundo dados do Tribunal Superior de Justiça (TSE) — sujeitos à alterações devido ao segundo turno — o percentual de prefeituras onde mulheres foram eleitas foi de 11,57% para 12,2%. Elas representam apenas 16% das vereadoras eleitas, ainda um número distante da paridade desejada. 

“As eleições municipais ainda mostram a capacidade de controle e o fortalecimento das elites locais e seu fortalecimento”, analisa a cientista política Danusa Marques, professora adjunta e vice-presidente do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB). “Com relação às candidaturas de mulheres, embora tenha havido um crescimento de candidaturas, ele ainda é pequeno, principalmente quando falamos de cargos sem ações afirmativas, como os de prefeitura. Desde 1996 temos cotas implementadas vigorando para os cargos proporcionais, então ainda estamos indo em passo de tartaruga.”

Pensando em avanços, a cientista aponta a progressão qualitativa das candidaturas negras.  Segundo levantamento do portal Gênero e Número, das cadeiras de vereadores ocupadas nas 25 capitais brasileiras, 44% delas estão ocupadas por pessoas negras. 

O sociólogo e cientista político Marcos Agostinho Silva vê nisso uma militância negra, oriunda principalmente de mulheres e juventude de territórios periféricos, que se mobiliza para ocupar espaços institucionais: “A grande mudança que teve nessas eleições e isso teve algum certo acento na pandemia, porque a pandemia explicitou as desigualdades, foi que dentro desses e dessas desiguais — mulheres negras, pessoas LGBTQIA+, quilombos e indígenas — foi possível estabelecer pautas e ocupar espaços concretos nos mandatos.”

Ascensão de candidaturas diversas: potências e entraves

Mapeando territórios periféricos e suas relações com a política, Agostinho faz uma relação entre a ascensão de candidaturas mais diversas e um desvelamento das desigualdades que incidem sobre populações de maioria minorizada — para usar o conceito do pesquisador Richard Santos — durante a pandemia. “A pandemia avivou e deixou mais explícitas as desigualdades nas periferias. No mesmo período, houve um crescimento de discussões a respeitos das lutas antirracistas, puxadas por movimentos sociais negros, por manifestações dos Estados Unidos e também por casos brutais de jovens negros assassinados, como o de João Pedro, assassinado pelo Estado enquanto entregava cestas básicas na favela da Cidade de Deus (RJ).”

“O efeito disso — e aqui faço um recorte em São Paulo e algumas de suas regiões metropolitanas — foi que candidaturas coletivas e de pautas identitárias tiveram um salto. Foram eleitas candidaturas coletivas de mulheres, pessoas trans. O grande ganho dessas eleições é a formação desses mandatos coletivos, desses aquilombamentos, ressignificando o papel político da mulher, do negro e da juventude. É o papel da reexistência, de ressignificar os modos pelos quais as pessoas conseguem viver nos territórios e nas periferias.”

Concomitante a isso, o cientista político associa o levante dessas candidaturas progressistas a uma periferia que deseja ocupar esses espaços políticos com seus próprios dilemas diários. Isso explicaria uma ascensão de partidos de esquerda menos tradicionais, como o PSOL, que ganhou força nos pleitos como os de São Paulo e Rio de Janeiro e tem uma ampla maioria de candidatos jovens, oriundos de territórios periféricos e de movimentos sociais. 

“As periferias hoje representam uma novidade porque não se deixam só usar, começam a se reconhecer e a se empoderar. Mulheres, negros e jovens nunca tiveram voz dentro da esquerda petista, por exemplo. Se antes jovens de periferia eram usados para encher comício, hoje essa juventude busca outras lideranças, busca se fazer liderança. Aqueles jovens cujos pais cursaram a universidade por cotas vêem uma necessidade de representatividade e não enxergam mais a esquerda tradicional como única saída possível.”

a vereadora erika hilton posa para foto

Erika Hilton (PSOL) foi a 6ª candidata mais votada para a vereança da capital paulista / Crédito: Facebook

Embora nestas eleições tenham vigorado pela primeira vez a determinação de cotas financeiras para candidatos negros e mulheres, ainda existem brechas deixadas nessa legislação por maior inclusão, o que é impeditivo para um número mais expressivo de candidaturas diversas. 

“A lei das cotas das mulheres foi ao longo dos anos sofrendo modificações, incrementações para fechar as possibilidade de brechas, mas os partidos ainda conseguem fazê-las”, analisa Marques. “Foi o que vimos em 2018, quando o TSE decidiu que não bastava as cotas, era necessário tempo de horário e recurso de fundo eleitoral, e então, aconteceu uma explosão de candidatos laranjas. Neste ano, com o fundo eleitoral proporcional para pessoas negras, vimos os partidos não cumprindo, dizendo que estava em cima da hora, buscando anistia para justificar brecha e continuar a concentrar os recursos nas mãos da elite local.”

Ainda assim, aponta a cientista, há motivo para insistir na existência e ampliação dessas cotas: “Candidatos homens brancos muitas vezes têm recursos próprios. Mulheres negras, pessoas LGBTQIA+ e outros grupos sub-representados dependeram fundamentalmente do fundo eleitoral e partidário para financiar suas campanhas.”

Abstenções: participação social comprometida pela pandemia e pelo desgaste no discurso político 

Desde as duas últimas eleições municipais, tem se percebido uma diminuição na participação social durante as votações. Em 2020, não foi diferente. A taxa de abstenção foi maior nas eleições municipais, com 23,1% dos eleitores não comparecendo às urnas. 

Para além da própria pandemia, que foi um fator sanitário de abstenção para uma porção mais velha e vulnerável da população, Marques chama a atenção para dados como o tempo diminuto de campanha, que foi apenas de 45 dias antes do pleito, e a diminuição do número de debates, fatores que em sua opinião fragilizam a mobilização de uma população já desgastada com o discurso político. 

“Tem fatores externos que não podem ser controlados, como o medo por conta da pandemia, mas a diminuição do tempo de campanha de 90 para 45 dias era um fator que podia ter sido. Já não teve rua, então os prefeitos tiveram um tempo de visibilidade maior, e os vereadores não. Em um ano que pessoas estiveram enclausuradas, voltadas para si e suas famílias, a capacidade de se organizar politicamente foi afetada.”

“Isso sem contar o movimento de desacreditar a política que está sendo constituído no Brasil há muitos anos. Se os partidos fossem mais orgânicos e mais próximos da população, seria possível organizar um debate público mais forte no momento eleitoral. O que tivemos foi emissoras de televisão cancelando debates mas continuando a gravar novelas, e uma tradição que começou a se desenhar em 2018 de abstenção de candidatos ao próprio debate. Isso é ruim, porque os debates são lugares onde as pessoas prestam atenção no que está sendo discutido para política.”

Pandemia também influenciou na abstenção / Crédito: Fernando Frazão (Agência Brasil)

Foto de capa por Tiago Zenero, da PNUD Brasil. A foto foi tirada na Marcha das mulheres negras contra o racismo, a violência e pelo bem viver.